2006-06-27

LÍNGUA, QUALIDADE DA LÍNGUA E INTOLERâNCIA
Há dias, numa das minha aulas com alunos estrangeiros do programa ERASMUS, uma afirmação de uma aluna ucraniana – com excelente formação linguística – alertou-me para um facto sobre o qual não tinha ainda reflectido muito profundamente. Dizia ela, no decurso de um debate sobre alguns registos de diversas línguas, que os portugueses falam muito mal e com péssima qualidade. Claro que não desaproveitei a oportunidade e, creio que para benefício de todos os alunos, dissertámos um pouco sobre o que significa falar mal e sobre o que significa o vocábulo qualidade, quando aplicado à língua com tão péssimo valor. Defendia ela singelamente que os nossos compatriotas com quem convive falam com muitos palavrões, com frases de sintaxe deficiente e com um vocabulário muito pobre, o que torna difícil, na sua perspectiva, uma conversação profícua sobre diversos temas. Gostaria de continuar neste lugar o debate então estabelecido, problematizando os conceitos de falar/escrever mal/bem e de qualidade da língua, bem como as múltiplas causas e consequências da interiorização de tais conceitos na praxis quotidiana, tendo como elementos balizadores a tolerância ou a intolerância face à boa ou à má qualidade da língua que diariamente usamos.

1. Código oral, código escrito, registos de língua
Convém iniciar esta exposição estabelecendo dois planos de análise necessários para a compreensão do tema em discussão. Por um lado, o plano da fala, da parole, no qual se inscrevem os diversos registos de língua que uma comunidade linguística concretiza; por outro, o plano da língua, da langue, no qual particularmente se releva o código escrito. Em ambos os casos, embora de formas eventualmente distintas, se problematizam conceitos como “norma”, “correcção”, “desvio”, entre outros não menos importantes.
No decurso de uma charla linguística, perguntava-se há tempos André Martinet se nos é permitido afirmar que uma língua é bela. Pensava ele, naturalmente, no francês, e posso eu transferir tal interrogação para o português. Posso eu dizer que a língua portuguesa é bela? Que factores intralinguísticos (também extralinguísticos?) me permitirão fundamentar tal afirmação? Num livro já relativamente antigo mas sempre actual (Estilística da Língua Portuguesa), lembra Rodrigues Lapa o escritor francês Valéry-Larbaud e as suas apreciações emotivas sobre áreas lexicais do português. Para este escritor, o vocábulo “menina”, por exemplo, “é um termo encantador, com um ar antigo, afidalgado” (p.15), o vocábulo “garota” “também é uma palavra bonita e própria para as raparigas do povo duma grande cidade” (p.14). As palavras têm, na sua opinião, portanto, um valor estético intrínseco que é naturalmente relevado por factores emotivos de diverso tipo.
Pensemos no código oral e situemos a apreciação estética nos múltiplos registos de língua que se verificam no português. Pessoalmente, acho belo o falar do portuense da Ribeira, fundado em sintacticismos muito característicos, num léxico específico de um registo dito de baixo “nível” – o calão – e em aspectos fonéticos também eles específicos ( “ é a pronúncia do Norte, os tontos chamam-lhe torpe”). Belo é também o falar arrastado alentejano, o afrancesado micaelense, e quando exponho a minha apreciação estética não penso minimamente na “norma” (ou nas “normas”) da oralidade, em função da qual, ou das quais, eu poderia eventualmente estabelecer determinados juízos de valor. Não estou a confundir, de modo nenhum, os conceitos de “beleza” e de “correcção”, embora eles se interseccionem num qualquer ponto das suas actualizações. O portuense ribeirinho fala mal? Talvez. Mas que é bela a sua fala, lá isso é.
Mas, afinal, o que significa falar bem ou mal uma língua? Se eu tiver uma boa dicção, mesmo situando-me num registo de nível inferior, falo bem? Se utilizar um léxico pouco usual, ou supostamente pertencente a um registo culto ou elevado, mas o fizer com uma dicção deficiente, ou com uma timbre de voz deselegante, falo bem? Se eu tiver uma dicção excelente, mas o meu discurso for completamente descoordenado, incoerente, logicamente inconsistente, falo bem? Falar bem tem a ver com efeitos retórico-estilísticos, poéticos, rítmicos? Ou falo bem se o fizer de acordo com uma norma (ou com normas) de oralidade, mesmo na hipótese de não dominar minimamente aspectos essenciais da retórica? Disse alguém (João Carreira Bom, Ciberdúvidas) que o acto de falar bem ou mal não depende exclusivamente de quem fala, mas em grande parte de quem ouve. E, se pensarmos na importância de uma boa escuta para a correcta descodificação das mensagens, facilmente concordaremos com a afirmação. Nesta assembleia estão com certeza pessoas com atitudes e posicionamentos físicos e psicológicos diferentes, a sua captação e compreensão das mensagens serão com certeza diferentes, a própria disposição física e psicológica do orador (do falante) pode ser influenciadora de uma melhor ou pior dicção, em suma, parecem interferir no acto de falar bem fenómenos demasiado complexos para reduzirmos o significado da expressão falar bem a algo de unívoco.
O entendimento mais geral, parece encaminhar-nos, no entanto, para a ideia de que falamos bem quando falamos de acordo com uma norma aceite pela comunidade linguística. Falar de norma (ou normas) para a oralidade potencia a assunção purista, de cariz antropológico e histórico, e provoca ricochetes de natureza sociológica e, porque não, política. No caso português, continua a discussão sobre o dormitório da dita cuja: em Coimbra, dizem alguns, saudosos da influência da velha universidade; em Lisboa, dizem outros, ciosos da importância da capital. A afirmação purista relativa ao bem falar pode, nalguns casos, violentar pela palavra. Numa das explicações do sítio Ciberdúvidas ( sítio de valor inquestionável para um melhor conhecimento da língua portuguesa), e a propósito do plural da palavra acordo, dizia um dos explicadores, sem dúvida grande conhecedor da nossa língua: quem disser acórdos em vez de acôrdos é um ignorante! Não se duvida da importância da função reguladora, normalizadora, que instituições como as universidades (?), a televisão ou a rádio podem desempenhar, num universo de múltiplas e desconstrutoras influências linguísticas, mas a violência daquele “ignorante” pode ser demolidora, se em causa estiverem, por exemplo, pronúncias a que, como diz a canção, os tontos chamam torpes.

2. A qualidade da língua e a crise das línguas
Que parece haver uma crise generalizada das línguas é um facto. Como lembra Jacques Maurais (1985:1), expressões como “O martírio das línguas modernas”, “A hecatombe da ortografia”, “O inglês morrerá na América” ou “Estão a assassinar o português” exprimem preocupações sobre o estado e a qualidade das línguas neste virar de século. Num livro de 1985, justamente intitulado La crise des langues, podemos verificar como o problema, longe de ser apenas portugês, parece impor-se de forma inelutável em todas as línguas do mundo. É assim para o francês em França, no Quebec, na Suiça ou na Bélgica, para o inglês no Reino-Unido, nos Estados Unidos, em todos os países da Commonwealth, na Alemanha e na Noruega, na Dinamarca e nos países da América latina, no Brasil, enfim, em todo o espaço onde se fala uma língua. O radicalismo das afirmações, com pontuais suavizações, é geral, e dá conta de um “mal-estar” relativamente à forma como se fala ou se escreve cada língua, isto é, relativamente à qualidade actual de cada língua em análise.
No caso do português, todos nos lembramos do grito inscrito na já célebre expressão “Estão a assassinar o português!”. Subjacente a este grito está a consciência de uma pretensa perda de qualidade da nossa língua, perda essa vísível, sugere-se, em aspectos fonéticos, morfossintácticos, gráficos e outros. Mas de que falamos, afinal, quando usamos um conceito como o de “qualidade da língua”, que supostos estão na sua base e que consequências decorrem dele? Teorizar o próprio conceito é já de si problemático, como lembra Culioli (1995:52), pois, sendo subjectivo, isto é, relevando parcialmente de uma ideologia da sociedade que forma a língua, não deixa de ser relativo, porque a qualidade linguística, conforme afirma Laporte (1995:204), só é avaliável em função de uma norma, ou de um modelo ideal. A perspectiva idealizante, que vê a língua como algo de acabado, de único, com o seu complexo de regras, parâmetros e princípios, surge hoje parcialmente representada nas hipóteses generativistas, cujos resultados taxativos potenciam uma asterisquização (palavra minha) em elevado grau, considerando agramatical tudo o que não é conforme às regras de geração de frases. A verdade é que a língua contém construções “erradas” que o utente aceita perfeitamente como correctas, sem as discutir. É o caso, por exemplo, das construções ilógicas
a) A maior parte dos estudantes entregaram o trabalho.
b) Vocês já fizeram os vossos deveres?

em que se evidenciam os “erros” de concordância entregaram/entregou e vossos/ seus. O segundo exemplo tipifica, aliás, um dos mais evidentes erros de lógica gramatical aceites como não-erro, de tal forma que a estrutura logicamente correcta tende a ser apreendida como incorrecta, sendo a incorrecta de uso generalizado no universo linguístico do português europeu. A verdade é que, como realça Rodrigues Lapa, “ a língua não acumula formas de dizer e de escrever só por amor à variedade. Essas variantes traduzem outros tantos matizes de sentimento e da ideia. (...) No dia em que atingíssemos o ideal (impossível) de uma língua perfeita, dissecada, sem excepções, teríamos matado a Arte. Ora, morrer por morrer, que morra antes a Gramática...” ( Lapa, 1975: 218).
O conceito de “qualidade” implica, portanto, idealizações, normas, traz-nos à ideia as gramáticas normativas, prescritivas, aguça o discurso purista, sem dúvida elitista e conservador, e que se configura em geral como alarmista. “Qualidade” e “norma” justificam-se em critérios mais extrínsecos do que intrínsecos à própria língua. Por isso os linguistas tendem a pôr de lado – ou assumem radicalmente esse posicionamento – todas as considerações de ordem normativa, debruçando-se sobre a realidade dos factos linguísticos, deixando aos puristas guerreiros todas as considerações relativas à qualidade externa da língua, avaliável em julgamentos subjectivos de ordem estética ou, no limite, de ordem moral, passando pelos históricos, pelos etimológicos ou pelos analógicos, entre tantos outros.
“Qualidade da língua”, “norma”, “correcto” e “incorrecto”, são, como se vê, conceitos interdependentes e altamente polémicos. Na sua Nova Gramática da Língua Portuguesa, Celso Cunha e Lindley Cintra (1984:5) afirmam que “uma gramática deve fundar-se num claro conceito de norma e de correcção idiomática”, o que é não parece fácil de estabelecer, e referem um conjunto de critérios de correcção, entre os quais se relevam o histórico-literário, o histórico natural e o racional. Se a norma pode ter variações diatópicas (Portugal-Brasil...), diastráticas (culta-média...) ou diafásicas (prosa-poesia...) numa mesma comunidade linguística, nada melhor do que reconhecer – aceitando um certo liberalismo gramatical – a importância do critério da aceitabilidade social, “o único válido em qualquer circunstância” (1984:8). Ora, é precisamente no âmbito geral destes critérios que se inscrevem discussões muito actuais relativas ao tema em análise, e que passamos a expor, em síntese:
Os dicionários actuais e a qualidade da língua. – Uma discussão fundamental sobre a função reguladora, normalizadora, dos dicionários parece necessária, num momento em que o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, pela sua importância, pelo seu conteúdo, mas, principalmente, pelos critérios dicionarísticos adoptados, nos traz algumas perplexidades. A aceitação da função normalizadora dos dicionários nunca foi vista como absoluta, mas sempre se presumiu a sua força reguladora: eu escrevo esta palavra assim porque está assim dicionarizada ( facto que, por exemplo, nunca foi evidente relativamente à função reguladora das gramáticas que, pelo menos no universo das estruturas sintácticas da nossa língua, sempre se mostraram largamente deficitárias). Ora, o Novo Dicionário da Academia veio complexificar um pouco a questão, ao propor o aportuguesamento de palavras como stresse (fará norma?), ou ao incluir no seu corpo palavras estrangeiras como speed, ice-cream ou spleen, entre muitas outras, sugerindo deste modo a validade da sua utilização em contextos específicos, em detrimento do uso do equivalente português. Perde a língua portuguesa qualidade se usarmos estes estrangeirismos, validados pelo próprio Dicionário da Academia?
Regista também este Dicionário palavras como hardware ou software, de aportuguesamento muito difícil. Na sociedade actual, fortemente movida por uma indústria informática e por factores económicos cuja base linguística é fundamentalmente o inglês, a proliferação de neologismos dificilmente traduzíveis é um facto inquestionável e sugere, numa perspectiva nacional, a necessidade de uma política linguística de conservação de uma certa “qualidade da língua”. O problema das terminologias (sentido de forma acurada no próprio universo linguístico-gramatical), o surgimento de novos termos técnicos, a imposição das linguagens internéticas e de sistemas de envio de mensagens (sms) com todo o seu complexo de simbologias, de reduções sintácticas e vocabulares, de simplificações gráficas, põem em evidência a necessidade de uma reflexão sobre as suas repercussões na forma como se fala e se escreve a nossa língua.

3. O Estado como guardião da língua?
Em França, uma lei de 30 de Setembro de 1986 confiou ao Conselho Superior do Audiovisual a missão de defender a língua e a cultura francesas na televisão e na imprensa. No Brasil, uma determinação recente, amplamente discutida e criticada, impõe coimas às pessoas ou às entidades que escrevam um português “incorrecto”, presumindo-se que a incidência persecutória se reflicta, pela própria valoração dos dicionários em detrimento de regras estruturantes raramente inscritas nas gramáticas, mais no universo lexical do que no universo sintáctico.
Em Portugal, supõe-se a existência de códigos de escrita, ou de livros de estilo, que suportem a escrita jornalística, ou a boa dicção e organização discursiva dos locutores televisivos. A autoregulação linguística parece ser um princípio funcional, e o próprio prestígio do jornal ou do canal televisivo depende parcialmente da forma como apresenta as notícias, os textos opinativos, todos os textos em geral. Pessoalmente, sempre gostei do jornal desportivo “A Bola”, pela forma clara, simples e “correcta” como os textos são escritos. Ainda no âmbito desportivo, admiro a dicção escorreita e a fluência discursiva do jornalista Ribeiro Cristóvão, sem dúvida um exemplo a seguir até em aulas de técnicas de expressão oral.
Se a autoregulação existe na televisão, na rádio ou nos jornais, não podemos esquecer todos os outros contextos em que o intrumento língua se revela fundamental para o bom funcionamento das instituições. Por exemplo, quem controla ( e será possível ou pertinente controlar?) o português usado na Administração Pública? Quantos de nós não se indignaram já com a leitura de circulares cheias de erros gráficos ou de sintaxe? Inclusive, quantos problemas poderá causar nas diversas instituições uma circular deficientemente escrita, ou com uma simples vírgula fora do devido lugar? A determinado nível de responsabilidade, ou de importância dos próprios textos, não seria pertinente a intervenção reguladora de uma entidade linguisticamente competente? Como releva Guillorel (327), deve o Estado lavar as mãos relativamente aos problemas linguísticos, ou deve intervir de maneira firme em defesa deste património extraordinário que é a língua portuguesa?
Num tempo de revoluções néticas espantosas, não se vislumbra fácil qualquer solução neste domínio. Há cinco anos, por exemplo, o português ocupava cinco por cento dos sítios da Web. Hoje parece reduzir a sua participação a dois por cento. O problema, no entanto, continua a ser o da regulação do português escrito nesses sítios, na sua maioria com base na norma brasileira. Quem analisa o conteúdo dos sítios? Quem analisa a “correcção” da língua utilizada? Se a hospedagem dos sítios se efectua, na maioria das vezes, em servidores estrangeiros, como solucionar o problema?
Parece-me evidente que a solução se encontra exactamente na base da pirâmide, e que o esforço deve ser todo feito nos locais de ensino e aprendizagem por excelência. Em primeiro lugar, no seio da família, que é o berço da oralidade. Se em nossa casa nos preocuparmos em falar bem, com boa dicção, com discursos coerentes, conduzindo as crianças aos diálogos saudáveis e à exposição clara das ideias, estaremos a concretizar uma propedêutica excelente, tendo em vista a atitude linguística e metalinguística subsequentes. Em segundo lugar, na escola. Parece-me também evidente que as aulas de português – mas não só! – deverão ser lugares excelentes, não só para uma pedagogia da literatura, sempre importante, mas para uma pedagogia da língua e, o que é mais importante ainda, para uma pedagogia da fala.
Mais do que sermos guerreiros puristas, inflexíveis e intolerantes face à “incorrecção” ou ao “erro”, preocupemo-nos em incutir no espírito dos nossos jovens o prazer da leitura, da escrita criativa (mas também da instrumental), da reflexão e da expressão simples, clara e objectiva. Se assim o fizermos, talvez necessitemos menos destas palavras tão aflitivas, que são a palavra “erro”, ou a palavra “incorrecção”.

4. Bibliografia
Culioli, Antoine ( 1995), “Peut-on théoriser la notion de “qualité de la langue”? “, In La qualité de la langue? Le cas français. Honoré Champion: Paris.
Cunha, Celso, Cintra, Lindley ( 1984), Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Sá da Costa.
Guillorel, Hervé ( 1995), “La politique entre la purification et le laisser-aller linguistiques”. In La qualité de la langue? Le cas français. Honoré Champion: Paris.
Lapa, M. Rodrigues ( 1975), Estilística da Língua Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, Ldª.
Laporte, M. Pierre-Etienne ( 1995), “Aspects historiques et politiques de la question de la qualité de la langue: le cas du français québécois”. In La qualité de la langue? Le cas français. Honoré Champion: Paris.
Maurais, Jacques ( 1985), La crise des langues. Gouvernment du Quebec, Conseil de la langue française. Paris.

* Cf. Comunicação ao IV Encontro de Língua Portuguesa, Guimarães, 2004.



2006-06-21

À pinha
Não, não há pinha nos pinheiros, pelo menos nos pinheiros mansos. Parece que alguém se entretém a cortá-las ainda em flor, de modo que… nem vê-las. Por acaso, sou maluco por pinhões, no Natal entretenho-me a descascá-los, gosto do sabor a queimado. Um dia destes, o Rui falou-me de outras pinhas, uma fruta tipo anona, que lhe deram no Brasil. Gostou, e aprendeu o nome da coisa. Nos lados mais marisqueiros, as pinhas podem ser de bivalves e congéneres, tipo mexilhão ou percebes. E como o Zé é um grande mexilhão, a pinha também pode ser de Zés, ou claramente de gente. Se os Zés se acarneiram em magotes, formam uma enormíssima pinha. E se estão no Campo-da-Vinha, este fica à pinha, com os Zés encavalitados uns nos outros. A maioria das vezes, os carneiritos têm areia a mais na moleira, e sofrem da pinha, ficam com ela completamente desregulada. No limite, quando isso acontece, podem até comer a pinha a alguém, enganá-lo, intencionalmente ou não. Conclusão: isto de pinhas é como diz a Aninhas: ou te tratas ou definhas.



FINIS TERRAE
Releio Finisterra, do grande Carlos de Oliveira. Pela milésima vez, busco o significado da gisandra, o seu simbolismo. A forma como Oliveira transfigura o real, sempre em busca da verdade ( mas quod est veritas?), a forma como se projecta, em peregrinação interior, até ao fim da História, deslumbra-me e multiplica-me as leituras sempre necessárias. Por que razão é este extraordinário autor tão esquecido num país de tão curtos escribas? Finisterra é um livro lindo, talvez não muito fácil, mas que nos obriga a percorrer o coração das palavras. Mais logo acabo-o.
VÓS, VOCÊS E O CHEIRO A BAFIO.
Trabalhar com estrangeiros, conhecer as suas línguas, permite ao professor de Português como Língua Estrangeira aperceber-se de fenómenos que, sem este contexto, dificilmente fariam parte das suas cogitações. O estudo comparativo das línguas permite descobrir o que as línguas têm de lógico ou ilógico, e, no limite, conduz-nos a viagens na longa diacronia.
No que respeita aos pronomes pessoais com função sintáctica de sujeito, o português europeu actualiza o seguinte paradigma ( que compara com o paradigma espanhol, francês e inglês):

eu, yo, je, I
tu, tú, tu, you
ele/ela/você, ello/ella/usted, il/elle, he/she/it
nós, nosotros/as, nous, we
vós, vosotros/as, vous, you
eles/elas/vocês, ellos/ellas/ustedes, ils/elles, they

Como se pode ver, o inglês possui o neutro it que não existe nas outras três línguas e reduz a 3ª pessoa do plural à forma they. De resto, é equivalente às outras línguas, com excepção de você/usted. Os paradigmas são logicamente “iguais”: todas têm a 2ª pessoa do singular; todas têm a 2ª pessoa do plural. O plural de tu é vós; o plural de é vosotros/as; o plural de tu é vous; o plural de you é you. Ganham os ingleses, que não complicam as coisas. E os franceses também.
Em determinadas regiões de Espanha ( cujas línguas regionais se diferenciam por vezes do castelhano), há não poucas vezes confusões do tipo de ¿Ustedes vais al cine? Tais confusões acontecem e não perturbam a compreensão das mensagens.
Em português europeu, discute-se acaloradamente o uso de vós e de vocês. Como, de permeio, temos fórmulas como o senhor, o senhor doutor, o senhor doutor professor e outras quejandas enormidades relativas ao tratamento interpessoal, já vemos a confusão que por aí grassa, e a inquietude dos estudantes estrangeiros no momento da aprendizagem. Se o azarado estudante escolhe Lisboa, juram-lhe a pés juntos que o pronome vós ou não existe ou cheira a bafio. Dão-lhe, até, gramáticas pretensamente pedagógicas sem o dito cujo, como se o vós do paradigma pessoal tivesse peçonha ou cheirasse a chulé. Se escolhe o norte, ouve nos cantos da invicta ou no frondoso Bom-Jesus um Estai quietos, meninos!, ou Quereis um geladinho?
Não sei porquê, mas admiro o utente do vós, o conhecedor do fizerdes, o dominador da gramática. Você cheira-me a afectada deferência, a solução simples para a dificuldade da gramática. Por isso digo quase sempre vós: eu trato-vos por tu, não é verdade, meninos? Quanto ao vocês, talvez vos diga isso quando tiverdes mais idade. Pensando no bafio, prefiro-o ao ar puro do bué.
A FORMAÇÃO NO SPORTING
O Sporting domina nos campeonatos juvenis, dizem os jornais. Os responsáveis pela formação afirmam, contentes, a pujança do clube. É justo! O Sporting tem em Alcochete uma grande Academia e do trabalho bem realizado só pode nascer fruta boa e madura. Há, no entanto, um pormenor que merece ser destacado e que tem a ver com a forma como se processa o recrutamento dos jovens talentos. O Sporting tem pelo país fora uma miríade de olheiros que, numa atitude a meu ver criticável, entram na casa dos clubes pequenos sem lhes dar cavaco, interferindo no trabalho aí desenvolvido e, o que é pior, desequilibrando toda a formação do jovem que, como sabemos, deve ser física, intelectual e moral, o que o obriga, à partida, a crescer no seio da sua família. Com as alterações regulamentares existentes ou que se avizinham para um futuro próximo, o Sporting recebe (e acabará por receber ainda mais) crianças de 10, 11, 12 anos lá de cima de Melgaço ou lá de baixo da pontinha de Sagres. Como não hão-de os clubes grandes ser campeões nas camadas juvenis se o recrutamento se faz assim, desta forma descarada e sem penalizações? Mas a culpa nem será só dos clubes, será antes dos pais que, na ânsia da promoção a qualquer custo, desenraízam os filhos e lhes incutem ideiazinhas malucas. Este futebol…

O CEITIL
O ceitil é uma moedinha muito frágil, feita de cobre, que nasceu no reinado de D. Afonso V e morreu esmirradinha no reinado de D. Sebastião. Não sei bem porquê, mas tenho uma adoração especial por estas moedas ferrugentas, e colecciono-as com uma paixão difícil de explicar. Complicado é catalogá-las, pois são todas diferentes. Castelo, mar, escudo, cruzes, letra monetária, legenda, tudo são elementos de avaliação quando se trata de pô-las no grupo certo. O meu amigo Luís Nóbrega, do Funchal, é um especialista, e tem-me dado uma ajuda inestimável. A sua página em http://ceitis.no.sapo.pt/Ceitis.htm é única a nível mundial, e uma referência para quem quer aprofundar o estudo desta moeda. O seu trabalho complementa de forma elogiável os dados do Engenheiro Francisco A. Costa Magro ( Ceitis, 1986, Instituto de Sintra) e não pode ser perdido. Um dia destes, deparei-me no Fórum de Numismática com a beleza em epígrafe, pertença de Paulo Teixeira. É um ceitil extraordinário, não catalogado, e vejo-o pela primeira vez. Também penso como Luís: o escudo é igual ao dos leais do mesmo rei; a presença da palavra “INPERA” ajuda a pensar no leal. Há hibridismo, resultante, ou de engano, ou de uso de cunhos diferentes. O que ressalta destes exemplares é o seu valor estético. Por muito que as moedas actuais, feitas mecanicamente, sublinhem elementos ou relevos, nunca alcançarão o feitiço destas moedinhas, marteladas, roidinhas, cheiinhas de verdete, mas com tanta história para contar…
POEMA MEU I

A canção de Natal soava bela,
Os miúdos jogavam na escola,
No ar havia cheiro de canela,
E o velhote aconchegava a gola.

Em tempo de Natal a gente gela,
E mais se gela se se pede esmola.
Quem não tenha batatas na panela,
Escusa de ir ao fundo da cartola.

A canção embalava o seu lamento,
A gola aconchegada não podia,
Matar a fome como mata o vento.

Eu vi então um puto que sorria,
Dar-lhe nas mãos em mui discreto alento,
Um prato doce e quente de alegria.

Copyright José Silva

O CANUDO E O LONGUINHOS
No Bom Jesus de Braga, junto ao elevador, vê-se uma estátua equestre. Montado a cavalo, o centurião Longuinhos, contemporâneo de Cristo, acompanha-o na visão da cidade. Simbolicamente, Longuinhos viu Deus em Cristo, ou feriu Deus em Cristo. Ambos, Cristo e o centurião, analisam criticamente a cidade, as montanhas ao longe, o mar ao longe, o mundo para além do mar. Na esplanada, continua o canudo, ou o lugar do canudo, do grosso telescópio com que se aproximavam as nevralgias da urbe mitral. Peguei no canudo, ofereci-o ao contemplativo romano e pu-lo, feito eu, esmiuçando a cidade, o horizonte e o mundo nos confins do mar. Brácaro, procuro a porta aberta no limite da cidade. Que o arco da Porta Nova não nos caia, já que de portas nem vê-las.