2006-09-20

A BARCA DO INFERNO

Que bens fizeste na vida
que te sejam cá guiantes?
Se bem me lembro, Gil Vicente escreveu muitos Autos, uns mais bem conseguidos, outros nem por isso, mas todos eles com um espírito crítico assinalável. O que mais me admira no nosso grande dramaturgo é a sua capacidade para criticar grandes e pequenos, numa época de dependências e subserviências várias. Se olho para os Autos da Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória, vejo quase todas as personagens-tipo serem encaminhadas para a barca do Inferno, que é o lugar ideal para quem passa a vida fazendo o mal. Fidalgos, onzeneiros, judeus, procuradores ( Barca do Inferno), lavradores, tafuis, regateiras, frades (Barca do Purgatório), nenhum escapa ao destino simbólico das chamas. Mas o clímax desta caminhada encontramo-lo na Barca da Glória, onde progressivamente condes, duques, reis, imperadores, bispos, arcebispos, cardeais e até os papas ( pela luxúria e pela soberba) são colocados no Inferno, sem salvação possível. No meio de tudo isto, escapam figuras como o Parvo, ou os Quatro Cavaleiros, um porque é parvo e não tem culpa de o ser, outros porque lutaram pela fé de Cristo e assim se purificaram.

À pergunta do Anjo, Que bens fizeste na vida que te sejam cá guiantes?, o que responderiam personagens equivalentes da nossa actualidade? O que diria o professor, o médico, o dirigente de futebol, o ministro e até o papa? O que diria eu? Ponho um dedo na testa e.