2006-09-22

REGISTOS DE LÍNGUA

O Doutor Anacleto Bonifácio Pires é catedrático na Universidade Alpina do Gerês e especialista em biodiversidades. Em pleno parque natural, muito próximo da Peneda, possui um laboratório onde analisa pormenorizadamente todos os caules, todas as flores e todos os frutos que por ali encontra. É um grande estudioso. Tão estudioso e sapiente que acaba de publicar na revista Ciência e Vida um extenso e profundo artigo sobre a morus nigra, espécie de amoreira existente mesmo nas encostas de Vilarinho das Furnas. Diz ele, nesse artigo, que "A morus nigra é uma árvore caducifólia, de folhas simples e lobadas, cujos frutos vermelhos e pretos têm uma polpa carnosa e agridoce". Lembro-me de, numa conversa, ele ter-me dito exactamente a mesma coisa, o que demonstra as possibilidades da língua, tanto oral quanto escrita, para dizer as mesmas coisas. Sempre admirei o Doutor Anacleto pelo cuidado com que normalmente fala, e pelo cuidado com que escreve, embora nos seus escritos literários ele use um estilo, um registo um pouco diferente. Adoro as suas metáforas relacionadas com a natureza. Lembro-me daquele seu poema em que diz:

Oh serra verde do Gerês,
Sobre ti, águia liberta,
Eu voo em voos matinais...

Conheço o Doutor desde pequeno, percorremos juntos um longo caminho. O que mais me agrada nele é a sua maneira de ser, a forma como se adequa às diversas circunstâncias da vida, a forma como adequa a sua língua a essas mesmas circunstâncias. Digamos que eu vejo nele, como direi, alguns tipos sociais bem diferenciados. Aqui há tempos, ouvi-o conversando com outro catedrático, cirurgião, numa linguagem que não entendi. Dizia o médico, mais ou menos isto:

Amanhã vou fazer uma operação e preciso de uma bala de oxigénio. Acabou a que tínhamos e sem ela não posso operar.

Quando se despediram, eu pedi-lhe desculpa e dei-lhe conta da minha ignorância. Ele sorriu e explicou-me que o amigo usara uma gíria médica, umas expressões que os médicos usam entre si e que todos compreendem. Fiquei então a saber que a "bala de oxigénio" é um cilindro de oxigénio, uma botija.
Talvez não saibam, mas o Doutor é um grande atleta, joga futebol de salão com os amigos. Quem o conhece fica de boca aberta quando, em pleno jogo, ele desata um " F*d*-se, passa a bola, c*r*lho". Afinal, ele também usa palavras de um registo mais baixo, mais popular e obsceno, o calão. Mas di-lo sempre sem intenção de ofender. Eu acho graça quando ele grita para o Inocêncio, "Oh Inoxênxio, paxa a bola!". Partimo-nos a rir, porque esta característica fonética regional ( ele viveu a sua juventude lá para os lados de Amarante), este regionalismo, dá-lhe um ar amigo e formidável.
Todos gostam do Doutor Anacleto. Os amigos disputam a sua companhia, os seus familiares adoram-no. Quando ele se lhes dirige naquele registo familiar tão peculiar e diz Olha a minha bichaninha, anda cá, meu amor, dá cá um chi-coração , ficam todos babadinhos.
Este grande amigo é um espectáculo. É uma síntese de tudo e de todos. Tem em si o homem culto, o catedrático, que usa um registo de língua elevado, culto, tanto na escrita como na fala. É também um escritor, um poeta, e usa o registo literário adequado. É, no entanto, um homem normal, usa normalmente a língua que é usada por toda a gente ( a língua-padrão). Mas também conhece e usa outros registos, que aprendeu ou que lhe são intrínsecos, naturais, como a gíria,o calão, o regionalismo ou a própria linguagem familiar.
Pessoalmente, agradeço ao Doutor Anacleto por me permitir escrever este texto, que é a prova mais do que provada de que é muito difícil distinguir níveis ou registos de língua, e que, na maior parte das vezes, nós usamos uma mistura de acordo com as nossas necessidades e com as circunstâncias em que vivemos no nosso dia-a-dia.



Palavras-chave: registos de língua, níveis de língua, léxico, registo literário, registo cuidado, norma, língua-padrão, registo familiar, gíria, calão, regionalismo