2006-07-25

'TÊM HAVIDO' MUITOS ERROS
Anselmo Borges, padre e professor de filosofia, escreveu no Diário de Notícias do dia 23 de Julho de 2006 o artigo "‘Têm havido’ muitos erros", inscrito posteriormente no sítio Ciberdúvidas. Aborrece-se o autor, com toda a razão, quando vê a língua portuguesa maltratada por estudantes, jornalistas, professores e, pasme-se, até ministros! Eu, sinceramente, já passei a fase do aborrecimento, estou agora na fase da compreensão dos fenómenos, que, não poucas vezes, são do âmbito da psicologia. O verbo haver é um verbo muito complexo em português, complexidade resultante das suas múltiplas possibilidades significativas. Analisemos algumas:
a) Como auxiliar, pode assumir forma plural: Havíamos prometido ir ao jantar, mas não fomos. Com este valor significativo, soa um pouco a arcaísmo, e é geralmente substituído pelo verbo ter.
b) Com valor modal, na estrutura Haver de + Infinitivo, pode significar dever, possibilidade, obrigatoriedade, probabilidade, entre outros possíveis valores significativos. Também neste caso assume forma plural: Havemos de ir a tua casa provar o bacalhau à narcisa.
c) Como verbo pleno com o significado aproximado de achar, ou considerar, assume ainda forma plural: Os juízes haviam-no por muito inteligente.
d) Finalmente, como verbo pleno, impessoal e sempre no singular, haver significa existir ( Há moças muito bonitas!), acontecer ou ter lugar ( Houve um maremoto na Indonésia.) e passar-se (tempo) ( O jogo começou há cinco minutos.).
Como se pode ver, há razões psicológicas ( fenómenos de analogia, por exemplo) que explicam o uso “errado” deste verbo impessoal em formas plurais.
Há pelo menos duas circunstâncias a relevar quando procedemos a análises sintácticas de frases que contenham este verbo impessoal, ambas do âmbito argumental, externo ou interno. No que respeita ao primeiro argumento interno, todos (quase todos?) os dicionários etiquetam este verbo como sendo transitivo. Na frase Houve um maremoto na Indonésia., o grupo nominal um maremoto, funcionando como primeiro argumento interno, corresponderá ao objecto directo. Mas, sê-lo-á? Façamos dois testes, um com clítico outro com uma estrutura passiva:
e) Houve um maremoto na Indonésia. // ?Houve-o na Indonésia. // *Um maremoto foi havido na Indonésia.
A ser verbo transitivo, é-o de uma transitividade muito particular, a merecer estudo.
A segunda circunstância é relativa ao argumento externo, àquilo que o padre Anselmo Borges antevê, quando escreve Seria preciso perguntar-lhes qual é o sujeito do verbo. Ora, se é verdade o entendimento actual que assume a existência do princípio universal todas as línguas têm sujeito, não é menos verdade a “evidência” de que há fenómenos característicos de línguas particulares que parecem contrariar este princípio (por exemplo, o parâmetro do sujeito nulo - que acciona ou não - ou casos de verbos meteorológicos na língua portuguesa).
Que significa dizer “verbo impessoal”? Que não tem pessoa. Se não tem pessoa, não tem sujeito. Claro que deveríamos definir o que entendemos por sujeito, e essa definição seria muito complexa. Poderíamos dar uma definição psicológica, à maneira tradicional, ou poderíamos dar uma definição por constituência, à maneira generativa. Teríamos dificuldades, de um lado ou de outro. É verdade que em francês, por exemplo, o sujeito é obrigatório: Il y a. Mas em português, para além de não ser obrigatório, ele puramente não existe! Ajuda-nos supor a sua existência, como o faz o padre Anselmo Borges? Se ajuda, porque não supô-lo? [Ele] há moças muito bonitas? Se [ele] há… há. [Ele] há cada coisa...